terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Poemas de Alejandra Pizarnik

"Oxalá, pudesse viver somente em êxtase, fazendo o corpo do poema como meu próprio corpo, resgatando cada frase com meus dias e minhas semanas, fundindo no poema o meu sopro à medida que cada letra de cada palavra tenha sido sacrificada nas cerimônias do viver".

Caminhos do espelho
E sobretudo olhar com inocência. Como se nada se passasse, o que é certo.
 Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro no limite afiado da noite.
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esbatida pela chuva.
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona no umbral.
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e afugenta a menina que foste.
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, bebia, recordo.
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há alguém aqui que treme. Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava eu? Desejava um silêncio perfeito. Por isso falo.
A noite parece um grito de lobo.
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela que dorme num país ao vento.
A minha queda sem fim na minha queda sem fim onde ninguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu embora me referisse à aurora luminosa.
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira da afogada que não cessa de passar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que a minha voz diz. "Extração da Pedra da Loucura" (1968), tradução de Luciana Leiderfarb 


A crisálida e a clareira

Lera poemas escutara canções apaixonou-se verdadeiramente totalmente integralmente por outro além de si daí  todos os poemas todas as canções eram outras.

Foi preciso ouvir tudo de novo. Uma trabalheira.

Perplexa

Como se o que houver puder ser dito
preciso disso
ir ali tomar um ácido
pra lá buscar
a palavra

que explica

Tive de ir
à rua perplexa
procurar a palavra

A noite fresca estala
algo inominável que trazia antigamentes

Caminhei devagar desvirando poças
ignorando sermões
Torcia pra nuvem sair e deixar brilhar

lua até aqui

Voltei com cigarros acessos
Mãos dadas à um fantasma
Colhi o poema
Salva, escrevi.

Se consegui dizer o que queria?

É preciso decifrar
O mistério é maior do que pode ser dito
e todos os poetas já disseram isto.


Pros que vêm

antónio ramos rosa
maiakovski guimarães
herberto helder 
allen ginsberg baudelaire
joão cabral mello neto 
eugenio andrade rubem
alves
murilo mendes

manoel de barros 
virginia woolf carlos
drummond de andrade alejandra pizarnik hilda hilst
cecília meireles annas helenas

tão todos mortos por aí
ex, tão mortos, tudo aí

Se viesses verias quê cheiro têm ambas mãos minhas

se viesses verias
quê cheiro têm

ambas mãos minhas

agora mesmo
são

aroma de
sangue verde
dos ramos
dos girassóis
que extirpei
pois teimavam ocupar teu lugar à cama

domingo, 20 de dezembro de 2015

Milhões de crianças em mil mundos

o pensamento que emerge letra silaba palavra frase
sobre
a superfície branca ou pedra ou areia ou madeira
ou mármore
há de ser

límpido
caso haja emergido pós ruido de homem 

que sobe
o altar granito da igreja
fala e se farta dos aplausos dos outros

que lhe fazem coro
há de se esperar passar o rancor maledicente

para o pensamento nascer vívido e só morra
se ouvido muito lá pela frente
por outro tipo, homem mais parecido a grilo
que substitui a palavra pelo sibilo rente

não há o que ser dito em tempo assim
cheio de nuvem defronte à tua testa
enrugada
cheio de cheias
e teias ignoradas

nem há o que rogar ante os equívocos
uníssonos desses passos tantos pr´onde?


há crianças que brincam e isto há de salvar o mundo imundo
limpidar valas tem umas que pulam no charco e isto há de ressuscitar rios
outras cujos risos abrem janelas encerradas

devemos deixar fantasmas felizes

e quebrar tijolo por tijolo o tempo
quedar o templo que nos inibe ser quem somos
rasgar
o pano que impele asfixia aos poros

lamber os pomos da natureza com pudor
limpar os acordes das notas estúpidas
beijar a boca de nosso senhor jesus
com amor


ou isso ou fico surdo ou mudo
morrer não posso

domingo, 6 de dezembro de 2015

Os ornitólogos

moondog
Estudantes de ornitologia
sonham que
pássaros engaiolados
sonham que
voam

e cada sonho desse
assim sonhado
é um poema farto que cai
enfarto

sem ser escrito

a cada voo desse alçado
será o poema perdido
que portanto não poderá

ser lido ou escrito
por homem algum que
engaiola o
pássaro

ou o
ornitorrinco.

Floresta

sei donde vim
sabes pr´onde 
vais
podemos contar?

sibila!

a floresta é o recinto onde são guardados os segredos.

inquiri!
sofre vertigem o passarinho neste ninho que balança tanto?


ah mar!
exclama o ser
insigne ermo da floresta
(o famoso ser só)

que do rio lustral colhe a palavra dulcífluo que vai docemente
ave fly


no antro há o inominável cheiro putrefato
da palavra pútrida
úmida!

vimos homem fétido lúgubre funesto fim

homília!
queremos que as flores não sejam colhidas
queremos a magia da luz das seis
e depois ver o verde

lume na bunda pirilampa

mais


queremos que o sol volte
amanhã de manhã

e fure os vãos dentre as folhas
que mil raios partam o espaço
e toquem a formiga
despontando
do cimo do
formigueiro

Treino para a poesia menos pura

Treino o foco no tempo das acerolas
rechonchudas, gordas, rubis, azedas
mas
o cheiro putrefato vem por vento

diante do que
tece-se
um manto de morte
putrefato
nutriente

não há poema que aguente putrefação

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Ah mar

em respeito ao universo 
por palavras peço
à terra onde respiro
perdão

por sonhar de corpo astral 
que colhia brutas pedras
brilhantes 
cor de

rosas transparentes
do seio mãe
das areias
da praia da terra
as guardei em sacolas
carreguei seus pesos
para o eu para os meus

as 
tirei de seu 
habitat 
de brilhar ao sol
para as assombrar 
fundo em bolsas

rogo
rezo
rodo

volver ao sonho
ir 
devolvê-las
uma a uma à urna livre
às suas reverberâncias
às suas casas de areias
deitá-las
deixá-las

assim tornam-se-ão mulheres melhores

sábado, 14 de novembro de 2015

Ciranda para o limiar

flui ao vértice da terceira dimensão ver se
dali
 dava pra ver o tesserato não vi devo ter flanado errado pela aresta equívoca volvi ao estudos aspirei profundo respirei altíssima esperança flui lá ao vértice da terceira mas não vi a quarta mas sei que tem sei que existe há devo ter entrado pelo fundo errado volvi ao livro sentei entrei respirei fundo o erro profundo encheu me da esperança volvi e flui por cimo da terceira mas não vi flanei de volta pelo fio certo volvi respirei errei te disse não vi mas há não dá pra desenhar mas tem a quarta acreditar acreditar há flui ao cume do terceiro e do cimo de lá olhei pr´onde não é cima ou baixo ou pr´este ou pra quele lado e tinha mesmo um tesserato mas isto não quer dizer nada aqui

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Nascimentos

Conclusões

o princípio é incessante
não há como findar

poalhas que adejam

cápsulas de sementes
futuras infrutescências


mil plantas cistáceas

miríades coisas
todos os instantes
anjos terríveis

domingo, 8 de novembro de 2015

Exortação maviosa

es ta mos tão
acostumados a estar mos
vi vo s
que esquecemos que
(morremos
de
corpos)
qual quer dia
seremos poalhas a adejar
(
impalpáveis)

outros se servirão de nós para respiro
eu digo

que sou motivo
do que vai
...
adiante

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Alta lembrança alada

Tive
Memória extinta de volver à deus

Não sei mais como vim ter aqui
- mistério profundo isso
Sei por ciência que colhi material de semente dúctil
Cresci e num dia nasci
(Morrer e nascer
- o que mais há nesse mundo)

Antes, entre e depois
- o mistério profundo
queira ou não queira
ninguém sabe por quê
O moço contou-me
já não posso explicar-te e
se pudesse dizer não dizia
- o mundo anda imbecil
Melhor morrer tudo junto primeiro
Nascer tudo junto, outro, depois


recém nasci e não havia mais nenhum velho

pra contar a história toda
todo livro era novo campo branco de ideias vasto
- tinha vezes verde de tantas plantas
possibilidades visivelmente reais ideais os materiais

sem ais
sem mais
vou volver-me
adeus
vou-me eu alto ao Poeta,
devolvido

(Posfácio por Sophia de Mello Breyner Andresen, postado por Arsênio Meira Júnior)

"Aqui nesta praia onde não há nenhum vestígio de impureza, aqui onde há somente ondas tombando ininterruptamente, puro espaço e lúcida unidade, aqui o tempo apaixonadamente encontra a própria liberdade."
imgs.: Alberto Casiraghy 

Alba cheia com verbetes florais

Lá além, ali, aqui, aquém, algures, 
alguém
afundado na fundação do ego pleno de problemas e outros medos
passava sem ser
ver vastas e várias
arestas
e mais
algumas

pétalas,
rosáceas, filetes,

anteras, corolas, cálices,
invólucros, folíolos, prúmulas e primeiras flores 
ainda dobradas in semente antes da próxima primavera.
Hasteava problemas alheio às
nervuras centrais, laterais, ramos,
limbos, pecíolos.
Volvido em fadas, se ver

caules, cotiledônios, prevides aos frutos, heliantos,
filiformes, anastomoses, ranúnculos,
cornaduras, trevos.
Emaranhou-se revolvo em teias,

pisou vasos tubulares vegetais
nem viu aranhas
ninguém nenhures nem um plátano.

No bolso pílulas para complicações neurais.
Sabia íntimo ser viajor mas seria em próxima vida sem dúvida
- era seu desiderato profundo.

Escrevi assim para você que queria ser
andarilho
não entender nada e
sobretudo amar.

(ainda estou escrevendo. este é um poema difícil, precisa ser estudado e está incompleto)
"Não querendo mais uma obra para trabalhar, precisava de uma para me divertir. Decidi fazer a Flora petrinsularis e descrever todas as plantas da ilha sem omitir uma só, com detalhes suficientes para me ocupar pelo resto de meus dias. Dizem que um alemão escreveu um livro sobre a casca de um limão; eu teria escrito um sobre cada gramínea dos campos, sobre as pedras; enfim, não queria deixar um fio de grama, um átomo vegetal sem descrição." Jean-Jacques Rousseau

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Para você incompreender

Vênia! Venho falar:

Mesmo que finde a estrada não acaba
Mesmo que aos pés não aja chão - anda
Solte a flanar teu corpo sútil de matéria estúpida


Ouve:
- um caracol - material de poema - sonha ter medula e
acorda molusco
- outra medusa nasceu de uma ideia acesa e ergueu-se em osso
e coluna feita de algumas vértebras
(achei um osso de sobra em mim)

Tinha a alma dada à tua e podia desabar deste sustentáculo, sem dó.
Este nó, quem nos deu?
Isto você não sabe - rá!
Nem eu.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Aos náufragos

Estrela da manhã, estrela da tarde, estrela da noite, estrela do tempo inteiro, da vida inteira, fixa, imutável, pairando sobre o poeta. (Carlos Drummond de Andrade)

Almafuerte

Perdoem-me a algaravia:
escrevo ao tempo em que
trepo a madressilva
que dá ao belvedere.

Olhe! Lá há uma púnica.
- frutos de ventre rosa -

Óh! Uma pira ali.
- fuego de alma fuerte -
ao redor donde homens
desfilam suas porfias,
fátuos & antigamentes.
Dera fossem pó ou poema e só dançassem.

Lembrete

Uma ideia
antiquíssima
me deu

de eu ter estado
em 
deus.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

História

é o grito do meu ancestral mais antigo
na minha garganta
hoje

Pedro Rocha

sábado, 12 de setembro de 2015

O grande príncipe

Falarei para ti, que estás sozinha, porque tenho o desejo de te habitar.
Talvez te seja difícil receber o esposo de carne na tua casa, mas há presenças mais fortes.
Te hei-de visitar. Não tenho necessidade de me dar a conhecer, Sou laço do império e inventei-te uma oração. Sou fecho de abóboda de um certo gosto das coisas. E ligo-te.
Não quero que fiques deserta na tua perfeição. Farte-ei despertar para o fervor. Que dá e nunca retira nem reivindica propriedade ou presença.
O poema é belo por razões que não pertencem à lógica, já que se situa em outro andar.

Antoine de Saint-exupéry

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Laranjas

faça como eu não faço como ninguém
se quero acreditar em deus
faço suco das laranjas e tomo
se não existir deus, como existe a delícia?

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Vestido balança pedido

Vento que à tudo que à todos balança
Perpassa-nos com sua grande mão imensa
nas quais carrega o aroma do incenso e abraça e abrasa e enleva o liberto
e principalmente o andarilho que deambula.
Leve-nos leves para onde não neve e serve
Sopre-nos o ar manso, etéreo e firme, força com o qual balança as águas, move dunas e que vem e traz nuvens e maresia. 
E vai. E volte.
A amenizar o calor, que o que presta nesse mundo é sombra de árvore
e abundante água fresca.
Preencha tudo e todos desse amor de que é feita a água fresca, você que visita as fontes e cascatas e as falésias e os interiores. E, pedindo demais
Levantai-nos leve
livres leves, alive, pro amor
agora mesmo, não é só supor
agora
carregue nosso esquecimento. Trouxe enovelada esta flor. Apraz te ouvir, vento. Nos aprontar e seguir. Despir pra sentir teu tento. Adentrai futuro amorosamente ansiado. O Sol, o velho sol de primavera vem vindo, ventando e rindo. Invenção de um deus que gosta de percorrer espaços e cria espaços de percorrer.
Deambulante? Dizem que ele tem um plano...

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Secreta

Gisele Fagundes
todos os dias às 16:33 um beija-flor vem aqui e este é meu segredo
já não vem
ocorre uma mariposita vir me lamber o suor
antes a glândula secreta sal

(ela acha mel)
agora é noite, anotarei novos momentos

ainda não veio uma vaca me roçar
estaria feliz se viesse

também não estou triste
de manhã acho que olhei sargaços

um cachorro cismou comigo
o vento quis me arrancar cabelos

agora é quase tarde
há pouco ele voltou
15:33 o beija-flor esteve aqui

guarde este segredo
algo vai acontecer

sábado, 18 de julho de 2015

Fez-se do mar


sei de ti
uma
única
palavra - que não digo

sei de mim
um
calhamaço - não escrevo

nada valem - tão efêmero é ser

dois somos silêncios
um cardaço sine qua non
sem sumo, nem título
restos de terra e mar

sei do mundo a circunferência
que não vejo - desenho
(deus, não vejo! pudera?)

sei sobre tudo nada
então não conte

fiquemos quietos reinantes parados parentes inertes e somos mais
imenso


você título talvez
eu conteúdo
ninguém vai ler
contudo
acontecemos
e temos uma capa bonita
como a rosa - 
vermelha 
como a rosa que ilustra a capa vermelha do livro do António Ramos Rosa

como as unhas vermelhas que pintei pra caso te ver, ou te ler, ou te escrever,
pra caso te ser,
não sei.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Não sei fazer arco íris

Não sei fazer arco íris e este momento me é engolido como a um espinho que fincasse agudo, demasiado fundo, na garganta. Nem desce, para que digira, nem cuspo como se faz se fosse um gosto ruim. Como fazer para que saia? Alimento ilusão de que se esvaia se venho tratar contigo disto.

Se sentes frio um casaco ou abraço dão alívio. Se tens fomes, comes e eis que estais bem. Nada tratará isto que sinto ao engolir a incapacidade. Penso que a surdez fosse bom e agradeço o tampão de cera. Sinto que morrer não soluciona e nascer deu tanto trabalho. Preferia um engasgo que ao soco nas costas resolvesse. Mas não, não.


Não sei que fazer com as mãos. Nem que mil crianças me dessem as suas e fizessem festa ao olhar, levantaria-o. Solo, terra, rocha são os que vejo. Nem que teus raios de sol, óh deus qualquer, num verve descessem para salvarem-me, não daria à ti um só mistério meu, já que não me deu a ternura de fazer arco íris.


O fato que me veste cinza, que me fez engolir é momentâneo e é deste traje que trato. Não me dispo para que me salve. Nem me visto pra que aplauda. Quero só ser pequena ao ponto do tamanho do grão cósmico. Caber
exato em tua palma de mão. Se me apertas muito me abro. Queria ser ar, tão alto ar que nem servisse ao teu respiro. Vou querer volver à deus e deixar de ser eu, não deu. Só porque o céu tem esse azul assim bonito que me encorajo a escrever no ar daqui tais palavras. Não sei fazer arco-íris.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

e sei que piso um astro

Luis Ricardo Falero
como tudo é real como tudo respira
porque a terra é única e ninguém a engana
áspera e dura suave e sempre nova
por ela levanto este archote de resina ou de sal em chamas
porque nela renasço como tudo renasce e sou uma árvore
com o pulso de argila
ou uma onda vibrante do seu peito profundo
o clamor monótono de suas entranhas vermelhas
...
eu sou o homem renascido que vê a rosa viva do mundo
e sei que piso um astro e estou no círculo da metamorfose ardente
tudo é possível porque sou o fogo amante
...
ela é um barco ou animal de terra e sangue
é o músculo do mar em pleno estio
é o desejo do oásis o oásis do desejo
...
o seu andar de adolescente marinha desenha sobre a areia o voo de um pássaro

António Ramos Rosa

terça-feira, 19 de maio de 2015

Choque, ruína e síncope.

Por favor não editem meus livros.

Não os quero corrigidos. 
img.: Victor Pacini
Não os quero prensados, 
costurados, constrangidos, grampeados. 
No fundo nem os quero comprados 
- mas te faço e envio um a 14 reais.

Não os quero presos nas prateleiras ou encalhados no fundo das caixas que fedem papelão. Não os quero presos nas fendas do orgulho ou da breve situação.

Não quero que a vizinha me veja na televisão, nunca, não. 
Deixa-me ser esta incógnita que leva os filhos à praça à lamberem sorvetes de frutas quando é verão e que no fim do mês tem de ir ao supermercado. 

Por favor sr. editor esqueça hoje mesmo o email que mandei ontem. Apertei "enviar" mas era gatilho. Não poderei dizer de mim que sou bonita ou eu mesma ou que fui esperta e sorrir sem ser a vez. Não sei reagir à elogios e à qualquer tipo de crítica inundar-me-ão mil lágrimas e o colapso. Ou síncope, é certo.

Não quero autografar montanhas de pilhas de livros rigorosamente iguais para uma fila dos que possam estar apenas atrás de algo expresso. Dói-me o pulso pensar as assinaturas corridas e é certo que me servirão água engarrafada plasticamente. Tudo meu precisa de ar tipo atmosférico. O que sai de mim é natural: estou à beira da cachoeira escambando livros por pedras solares ou peixes frescos.

sábado, 9 de maio de 2015

Inerme

Adjetivo
Que não tem armas ou meios de defesa.


Botânica
Que não tem acúleos ou espinhos.


Zoologia
Diz-se do animal sem ferrão, bicos, pontas: tênia inerme.

Da arte de escrever do cume calmo

Escrevem através do conhecimento pessoal, e portanto empregam suas mentes concretas na tarefa de estabelecer este conhecimento em termos que revelarão a verdade àqueles que têm olhos para ver, e contudo ocultarão aquilo que for perigoso, do curiosos e do cego. Esta é uma tarefa difícil de cumprir, porque a mente concreta expressa o abstrato de maneira muito inadequada e, na tarefa de incorporar a verdade às palavras, muito do verdadeiro significado se perde.

Alice Bailey

Para dentro e para todos

tem uma parte - por dentro é azul
não é vista ou tocada nem sentida
mas é a que mais tem, existe e é.

pode ser telegrafada
- não por telégrafo!

para ir tem que rasgar o céu
ou cair.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Colóquio

- Borges, 
eu aquém também 
sempre acho que o 
paraíso seja algum tipo de biblioteca.

sábado, 25 de abril de 2015

Esse livro


Essas coisas


Ora vejam!
Parabenizara uma autora e nossa prosa caiu num dilema gramatical surreal.
Quis saber como editou, se esquivou. Ok. Resolveu, no seu ego de autor, aconselhar-me a não tratar minha obra por "livrinho" (tinha lhe falado que fizera um livrinho). Mas é um livrinho, pequenino, 33 páginas, magrinho, magrinho.
- Não, esta palavra não pega bem. Diminuiria o meu livro.
Sim, ora vejam! O livro diminuto é o livrinho.
Uma prosa que começa com admiração terminar nesta discussão cheia de amarras nomenclaturais. Ora.
- Ah vais ler Guimarães Rosa! - não disse eu.
Mas não deixou de dizer-me que tinha um livro a 20 reais, revisto & revisado, disponível ainda e que, que sorte, amanhã ia estar na praia fazendo umas leituras, e chamou à mim que nem moro ali e que levaria horas pra lá chegar. Que trabalhou aqui, que trabalhava lá... Ai, que inveja, só que não, fui sentindo. Eu, que nem editara ainda o meu livrinhozinho. Fiquei mudinha, miúda, pensando como chamar esta coisa de papel então que fiz. Pra terminar de forma amigável, dado até por ter descoberto que a dita era amiga de minha mãe, cedo.
- Que tal livreto?

terça-feira, 21 de abril de 2015

Terrear


http://frenesilivros.blogspot.com.br/2013_09_01_archive.html


Amanhã um bailarino vai deixar o palco.

Dará, extremamente concentrado, seu último giro que — não sabe — não se acaba ali:
seu êxtase seguirá girando até o infinito.
Vai ser amanhã em um teatro do mundo.

Sérgio Bernardo

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Sobre isto de ler e não se estar aqui

img.: Alain Laboile
Acontece que o poema me deu o mundo possível que não se vê em realidade.
Aconteceu do poeta morrer mas deixar-me a ler livros e possibilidades intocadas
dessas inócuas:
- como a blusa deitada ao lado por me apertar os seios

- como o peso atirado ao alto ao ar
a metamorfosear-se.
ah! não pode ser minha a canção entoada à fora à toa à força - esta bobagem.
O poema sim devolve-me.
Melíflua. Sim, esta sou eu.

A toada entornada pelo poema escorre
melíflua. Simples por toda vida toca o cerne até dizer o que não dá
pra dizer.
Dizer não diz mas se dá a quem insistir entender.

Quando a superfluidade desvai, ali se voa. A eternidade do cimo dali - tão bom.

Acontece que o poema é meu e dele sou eu e agora é assim.
Minha casinha de gomos de palavras, com capas de roupas soltas, recheios de verbos de mel, lambidas de sol à tarde, orelhas postas de peixe à mesa e coisas demais que não dão pra ver. Vai saber...
Posso morar aí. Não estranhes de não me ver. Flano junto ao poeta amigo meu que já gosta de mim.
Temos um poema em comum, já disse. Ele que escreveu. 

Não só pra mim. Pode ser seu. Vai querer? Eu só peguei pra mim - tão bom.

Flutuo já na claridade desta casa que ganhei pra flanar pelo poema.
É minha. Morei.

Tão bom.

sábado, 28 de março de 2015

A fleuma dos caracóis

(ainda vou escrever)


Eu escrevo à noite.
De dia tenho o hábito irritante de reler o que escrevi
para constatar que há coisas que não suportam sequer
o teste de uma volta do globo.

sexta-feira, 27 de março de 2015

sexta-feira, 13 de março de 2015

Trishna

a sede pela vida manifestada
o desejo de estar profundamente vivo